Fragmentos de um homem só, um livro de Wallace Andrade

Cidinha Da Silva
6 min readMar 27, 2020

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Quando faço muitas anotações em um livro de literatura é porque ele me instiga e a leitura flui. Wallace Andrade, autor negro da periferia de São Paulo, cineasta, estudante de arte dramática, poeta, emprega suas credenciais na construção de um texto fluido e ágil, escrito por alguém que domina a língua portuguesa e “escreve bem”. Penso que escrever bem não seja elogio, mas dever de ofício, embora esse não seja um entendimento comum, principalmente para quem se dedica a construção literária que corre às margens da literatura canônica.

As dezesseis primeiras páginas de “Fragmentos de um homem só” realmente me arrebataram, me jogaram no fluxo de um romance não linear que não contava uma história, parecia propor-se a fazer reflexões curtas e fundas, às vezes como se matasse um bicho de quatro patas criado em casa, um porco, por exemplo, uma facada precisa no coração para minimizar o tempo de sofrimento do animal, contudo, sem diminuir a crueldade e a violência que escorrem ali, junto com o sangue do bicho a expirar. Não existe alívio para quem lê “Fragmentos de um homem só”; é que as personagens do livro já foram mortas tantas vezes e de tantas formas, que se recusam a deixar confortável o coração de quem lê.

Essas páginas iniciais têm a velocidade de uma letra de Rap, são como Rap os primeiros capítulos. A letra do Rap, não raro parece grande quando comparada à música comercial ou mesmo à música boa, ambas costumeiramente de até três minutos. Os capítulos iniciais do livro são como boas letras de Rap, apresentam por meio de símbolos e signos universos complexos entre uma frase musical e outra. Existe um ritmo de quem vive intensamente, no sentido de a vida lhe obrigar a ter muitas experiências em curto espaço de tempo, umas tantas prematuras. O pulo do gato preto é sobreviver a tudo isso e, tendo sobrevivido, refletir sobre tudo e, no caso de Wallace Andrade, produzir literatura partir do racismo, da discriminação, da exploração econômica, do subjugo social e cultural impostos, do ódio gerado como resultado das opressões, num exercício prático de escrita disruptiva, consciente de que tudo aquilo que foi vivido e observado ainda não é a literatura, que é na construção de linguagem a partir do material literário que a gente se revela escritora. Wallace Andrade se revelou.

Revelação modelada pela tinta das verdades duras da formação dos que tiveram Racionais MCs como mestres. Lemos logo no primeiro parágrafo do livro: “Porque a honra nem sempre foi construída com orgulho, mas foi pintada perfeita fora das beiradas”. Antes ainda, a primeira frase: “Com papel e caneta escrevi negros os papeis”. Bom e belo começo, frase meio enigmática que desloca os sentidos de quem lê. No texto de Wallace Andrade, cada adjetivo tem um sentido, é cuidadosamente escolhido, não se trata de gordura verborrágica: “É preciso bordar o nosso mundo conforme o nosso olhar, mesmo que ele seja embaraçoso, difícil, volumoso e rebelde”.

O narrador afirma que “Nossa arte reflete nossa realidade. Não tem glamour, apenas a necessidade de colocar pra fora tudo que inflama”. Não concordo integralmente, mas é uma bela formulação para discordar. Com outra afirmação, concordei e aprendi, pois se trata de definição fina de quando a gente abre mão de ser a gente mesma para atingir um lugar projetado pelas expectativas, dos outros, sobretudo: “Hoje o Lipe me disse que queria ser igual a mim. Tudo que eu mais quero é que ele seja tudo o que eu não sou. Porque pra ser o que eu sou, eu fui tudo o que eu não queria”. Aliás, ser negro, morador de quebrada, define um lugar de ser apenas o que os limites lhe permitirem ser e este não será um mantra reiterado à exaustão ao longo do livro. Será um mantra repetido como remédio caseiro, antigo e de eficácia comprovada, ministrado em doses repetidas e alternadas até fazer efeito.

Em um momento ou outro o texto se torna comum e cai nas arapucas que o tempo da narrativa arma para nós, escritoras e escritores; às vezes nos deslumbramos com produção de efeitos especiais e deixamos capengas os processos. Às vezes também escorregamos em tons profético-religiosos que deixam o texto meio piegas: “É preciso conquistar o amanhã, assim como é preciso viver o hoje sem deixar pra trás o que sempre esteve junto. Pois não existe nada pior do que um sorriso perdido, um abraço não dado e palavras recolhidas nas entranhas”.

A partir da página dezessete o tom difuso da narrativa é abandonado e parece que o autor escolhe nos contar uma história mais linear, na qual veremos reflexões múltiplas sobre os processos de construção das masculinidades dos homens pretos e periféricos. Nos defrontaremos com a costura interna das tramas da vida cotidiana, com a sobrevivência ao dinheiro parco, pouca referência masculina positiva, muito abuso e exploração no emprego ( quando se tem um); com a extrema desqualificação na busca por trabalho; as expectativas conflitantes em torno do próprio caráter; muita violência policial e das demais instituições que não oferecem aos homens negros possibilidades, tampouco garantia de direitos. Nesse caminho, do ponto de vista literário, vemos a tentativa de construção de algumas figuras de linguagem supostamente inusitadas que não funcionam bem, falta liga: (…) “outro correndo em disparada admirando as lojas e também as cafonices, ditas por homens e mulheres que tentavam seduzir os clientes em potencial com palavras e eloquência de dar inveja a qualquer ser apaixonado”. Em contraposição, abundam sínteses descritivas fantásticas, que compreendem experiências comuns a uma infinidade de pessoas que não têm sido apresentadas de maneira digna e desde dentro na literatura brasileira: “Seu pai era baixinho, tinha cabelo curto, mas conforme a falta de dinheiro, o cabelo podia ficar meses sem ser cortado, deixando aparecer um Black volumoso que dava vida sem sobressaltos pra não chamar a atenção dos vizinhos. Cabelo grande era sinal de pobreza, e pobre nenhum quer parecer pobre, mesmo que, no final das contas, todos os gastos pra esconder a falta de dinheiro o tornem mais pobre”.

Em outros momentos temos acesso aos sonhos de jovens negros da quebrada, a suas referências estéticas que passam por Michael Jackson, Tony Tornado, Netinho de
Paula, Norton Nascimento, Maguila, Evander Holyfield, Sampa Crew, Detentos do Rap, entre outros. As personagens de Wallace Andrade demarcam o estatuto formador que esses homens negros tiveram em suas vidas. Quando essas personagens jovens falam de amor e tentam incluir reflexões de gênero que supostamente valorizam o lugar da mulher que não seja a mãe, não dá certo. O tom é meio constrangido, deslocado, superficial; é uma narrativa de homem se esforçando para apresentar as mulheres de um jeito menos subordinado. As mães aliás, continuam sendo as santas, as mulheres veneráveis e perfeitas vistas e apresentadas pelos homens da quebrada, com uma outra exceção. A sensação que tenho é que os autores, homens, precisam ler muita literatura escrita por mulheres, se quiserem mesmo aprender a construir personagens-mulheres mais complexas e convincentes, fora das caixinhas que eles julgam convincentes.

Por fim, três pontos que me deslocaram na leitura do livro: particularmente, devido à minha formação política não gosto de nomes como “nega fulana”, “nego cicrano”, “negão isso”, “negona aquilo”, não consigo ver ressignificação, mesmo quando dito por nós, negros. Afora esse aspecto, gosto da forma como Wallace Andrade destrincha as relações racializadas fazendo sobre elas incursões literárias. O livro é salpicado de tiradas inteligentes, cheias de humor e crítica para sobreviver à opressão racial, como vemos aqui: “Houve uma época, na quebrada, que todo mundo estava numa onda de deixar as coisas mais esclarecidas. As mulheres esticavam os cabelos com ferro quente. Os pretões usavam as mais variadas pastas de alisamento. Estava todo mundo tentando deixar as coisas claras. Os únicos que encrespavam o cotidiano das favelas eram os policiais”. A sensação a partir da leitura é que o autor se empenha para fugir dos clichês no tratamento dado ao racismo na literatura que temos produzido.

O segundo ponto na linha das construções-síntese que me encantaram no livro toca na discussão sobre a entrada de negros nas universidades como mecanismo de ascensão social: “A faculdade tinha mudado sua vida, mas não tinha mudado seu destino, ainda era o mesmo duro de sempre, mesmo convivendo com quem nada entende de dureza”.

O terceiro ponto é a construção literária feita a partir dos efeitos do indulto (liberação de pessoas que cumprem pena em presídios em determinadas épocas, Natal, dia das mães, semana santa) na quebrada. Vi um quadro de forças complexas e divergentes atuando sobre os indultados. Página antológica do livro e repito, apresentada como texto literário, não apenas como reprodução da realidade.

Aguardo os próximos livros de Wallace Andrade e torço para que ele siga o caminho das narrativas menos lineares, que me pareceram ser seu ponto forte, valendo-se do repertório trazido do cinema e do teatro. Mas, se como o escritor Fábio Mandingo, Wallace também optar por prosseguir documentando as masculinidades negras na quebrada, contando suas histórias e sendo uma voz de dentro desses personagens, também está valendo. Estaremos diante de um escritor e da sustentação de suas escolhas.

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Written by Cidinha Da Silva

Espaço editado pela escritora Cidinha da Silva, aborda o direito à cidade na perspectiva de africanidades; faz crítica cultural com ênfase em relações raciais.

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