Representação de Babá Egun na avenida, pode?

Cidinha Da Silva
4 min readFeb 24, 2020

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No tempo que vivi em Salvador me dei conta de ser muito mais sudestina do que pensava. Os soteropolitanos pretos não aliviam, jogam isso na cara da gente todo o tempo e não há outra saída senão compreender o quanto a pretensa superioridade do Sudeste está incrustada em atitudes de desrespeito ou de desconsideração por um jeito de viver e de operar as coisas que simplesmente não é o seu, e o seu jeito não é melhor do que nada.

Ser sudestina-paulistana ou identificada como tal em Salvador, mostrou-se ainda pior. O pessoal odeia paulistas em resposta ao desprezo que estes devotam aos baianos. O senso de grupo impera e todos os de lá são do grupo dos baianos, e os do lado de baixo, do grupo dos paulistas. Nota-se um contragolpe, às vezes sem foco definido, à máxima autoritário-paulistana: “Eles só sabem fazer festa, por isso têm a faca e o queijo na mão (quantitativo negro avassalador), mas não fazem a revolução (negra).”

Daí decorrem pelo menos duas questões: a primeira, um aprendizado de sudestina-mineira em Soterópolis, quer saber? A opressão racial aos negros daquela cidade é tão eficaz e acachapante quanto em regimes legais de apartheid estruturados e mantidos pelos agentes da lei e pela população branca que se beneficia da subalternização dos negros. Pode-se perceber isso também nos períodos de festa, principalmente na maior festa popular, o carnaval, contudo, é no cotidiano da falta de direito à cidade que o apartheid mostra as garras, no miúdo, na performatividade diuturna de atualização das práticas escravocratas. E para alcançar essa percepção é preciso vivenciar Salvador além da festa, esta, na qual sudestinos, paulistanos em especial, estereotipam os agentes e se relacionam de maneira extrativista com as pessoas. Baianos que não são e nunca foram bobos ou tontos, reagem e se impõem.

A segunda questão é o desconhecimento por parte de muitos de nós, de que São Paulo, em números absolutos é a maior cidade negra do Brasil. Segundo o Censo de 2010 a cidade tinha 11,8 milhões de habitantes. Destes, 34,6% eram negros (somatório de autodeclarados pardos e pretos), resultando numa população negra de 4,083 milhões de pessoas negras. É gente que não acaba mais e os ancestrais dessa gente modelaram culturas negras vigorosas, herdeiras da África Central, de onde os ancestrais desses ancestrais foram sequestrados e no Brasil escravizados; 1/4 dos africanos forçadamente trazidos para o Brasil partiram do porto de Luanda, mas a gente só se liga na Ilha de Goré. Pelo caminho do Atlântico, no período mais brutal do tráfico (no sentido do aumento das mortes), em que colocavam números absurdos de pessoas nos navios prevendo o fim do sistema escravista, até ¼ das pessoas transportadas morriam no percurso e tinham seus corpos atirados ao mar.

Não acompanhei a pesquisa feita pelo Ilú Obá de Min para apresentar uma alegoria de Babá Egun no carnaval 2020, mas imagino que a Kalunga Grande e todos os ancestrais do negro brasileiro indevidamente sepultados nas águas atlânticas tenham sido mote. Kalunga também representada nos maracatus pernambucanos (terra da homenageada, Lia de Itamaracá), muitas vezes de forma europeizada, nos trajes e cabelos, mas com o ngunzo e o feitiço dos candomblés de onde se originaram bem protegidos no interior do corpo da boneca.

Também importante para pensar nosso desconhecimento sobre a São Paulo negra é que São Paulo foi o laboratório da branquitude industrial emergente na segunda metade do século XIX para “dar um jeito” no país negro que o Brasil se tornara; afinal, de cada dois africanos retirados de África, um foi trazido para o Brasil. Era preciso injetar brancos massivamente no país para “equilibrar as coisas”. É sabido por todos que o Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, os outros estados da região Sudeste são negros, a “novidade” talvez seja admitir que São Paulo também.

Nessa São Paulo negra do século XXI, 430 mulheres tocam tambores para seu patrono, Xangô; cantam, dançam e representam as culturas negras modeladas na cidade, lideradas por uma mulher, pelo sonho de uma mulher negra, pela tenacidade, pela flecha certeira de mestra Beth Beli, apoiada por outras mulheres. Não é mole não, uma mulher negra, sem o apadrinhamento de empresários brancos ou o oportunismo de empresários negros, fazer um barulho dessa magnitude nessa São Paulo negra que continua se apresentando branca é para poucas.

Não sei se poderia haver alegoria de Babá Egun no carnaval, não tenho conhecimento ou autoridade para opinar, mas tenho certeza de que autoridades do Ilú Obá devem ter consultado autoridades religiosas (do Sudeste, elas também existem por lá), gente velha, guardiã da tradição e com domínio do tema e da prática, apta a dar as melhores orientações. Devem ter ido para a avenida resguardadas, porque ali também ninguém é boba ou tonta, são mulheres que africanizam o carnaval de São Paulo há 15 anos ininterruptos e sabem que precisam zelar pela saúde do corpo e do espírito.

Em fim de contas, me lembro das velhas Iyás ou daquele pessoal de terreiro que guarda o feitiço no cantinho da unha, depois de 40, 50 anos dedicados ao exercício religioso, que quando indagadas sobre alguma questão polêmica, respondem: “Candomblé? Eu não sei nada de candomblé, não. Eu sei dos preceitos da minha casa”.

De minha parte, sei que os tambores do candombe e de todos os reinados, do maracatu, do jongo e das bandas de congo também nos trouxeram até aqui.

Bom carnaval. Salve o dono do dia e salve o povo da rua. Laroiê!

Foto: Eliária Andrade (último ensaio aberto do Ilú Obá de Min, antes do desfile de carnaval 2020)

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Written by Cidinha Da Silva

Espaço editado pela escritora Cidinha da Silva, aborda o direito à cidade na perspectiva de africanidades; faz crítica cultural com ênfase em relações raciais.

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